Eu comecei a estudar a arte da pajelança com o meu avô, aos seis anos. Ele, um homem muito rígido na forma de ensinar, exigia de mim sabedoria e conhecimento, o que antecipou bastante meus estudos, e me deu um grande conhecimento muito cedo. Porem, eu não vivia na tribo. Minha mãe havia se casado com um negro, e se mudou pra cidade. Lá eu nasci. Lá comecei a estudar, vez ou outra passava pela tribo, levado pelo meu avô, o Payé Tukwura. Dez longos anos de estudo, até a minha iniciação. Porém Pa’i Kwara reservava algo para mim, uma surpresa na minha iniciação.
Um dos atos que marcavam a minha iniciação era o inicio de uma jornada xamânica, para qualquer lugar. Eu tinha dezesseis anos. Eu me lembro que orei muito para que a Mãe Terra me desse uma verdadeira viagem, que eu fosse direto para o centro da minha alma, e que pudesse aprender nela a ser um pajé de verdade. E meu pedido foi atendido.
Eu juntei vinte e cinco mil reais, e fui para o aeroporto, a fim de pegar o primeiro avião, sem destino certo. No guichê, a moça me dizia que havia um avião partindo para a Austrália. Entrei nele, sem medo. Muitas malas, utensílios xamânicos, dinheiro. Tudo o que eu precisava em minhas mãos.
Uma viagem longa. Cansativa. Nove horas dentro de um avião e de repente, uma turbulência. O avião caiu. Em solo, numa ilha. Somente quatro pessoas sobreviveram.. eu, uma moça de seus vinte e três anos, um senhor de setenta e oito anos e uma velhinha de oitenta e três. Aos dezesseis anos, eu tinha nas mãos uma mulher insegura, dois velhos para cuidar, sem comida, sem abrigo, em um lugar com uma topografia que eu não conhecia, com uma vegetação e fauna que eu não conhecia, tendo somente o xamanismo como âncora e um lugar onde meus vinte e cinco mil reais não valiam nada.
A primeira medida a tomar era construir um abrigo. Enquanto Nuria, a jovem africana cuidava dos velhos, eu me encarreguei da fogueira e do abrigo. Andando pela mata, eu percebi uma coisa..havia muito tabaco selvagem, e muita maconha. Havia uma quantidade grande de búfalos, o que pressupunha um dono, mas com o tempo eu parei de procurar. Eu e Nuria nos revezávamos nos cuidados do Sr. Andréas Shaeffer, um advogado aposentado alemão, e dona Ivha, uma senhora indiana de oitenta e três anos.
Tive que aprender com eles o alemão e o hindu, até mesmo para poder cuidar dos dois. Com o tempo, acabamos adotando um dialeto próprio, uma mistura de português, guarani, hindu, alemão e crioulo. Aos dezessete, tínhamos uma casa forte, comida, porque haviam suprimentos no avião, que eu consegui plantar, havia fumo e maconha, que eu e Nuria aprendemos a processar, havia chá de cogumelo, fazíamos os rituais, seguíamos e cultuávamos as estações do ano, construí um totem, aprendi a caçar, pescar, fiz meu tambor com o oco de uma arvore de cem anos e o couro de um búfalo que eu cacei, prendi a observar os animais e ver eles me ensinarem sobre as ervas do local, quais serviam para cura, quais eram boas para comer, quais eram venenosas. Entendi a importância da chuva, aprendi a apreciar com é bom quando ela cai. Aprendi a amar Nuria, e ela aprendeu a me amar. Aprendi a respeitar o Sr. Andréas como meu pai. Ele me ensinou como um homem deve agir perante as leis. Aprendi a amar dona Ivha como minha mãe, minha anciã sábia, que me ensinou o respeito às divindades, as magias hindus, e acima de tudo, me ensinou a ser um sacerdote. Tinha uma vida calma, boa alimentação, estava no auge do meu poder xamânico, e então, comecei a aprender as duras lições da vida.
O primeiro a nos deixar foi o Sr. Andréas. Ele precisava tomar remédios, que se perderam no acidente. Ele suportou três anos sem os remédios. Eu chorei, como uma criança que perdeu o pai. Nossa vida nunca mais foi a mesma sem ele. Eu fiz então, o meu primeiro funeral. Uma dor imensa atingiu o nosso lar na mata. Um silêncio de cortar o coração. Onze meses depois foi a vez de a dona Ivha nos deixar. Ela já estava com oitenta e sete, coitada. Não suportou a vida dura da mata. Meu segundo funeral se seguiu de uma súbita alegria. Nuria estava grávida. Não sei explicar o que senti, ao descobrir que seria pai. Os ritos de revelação indicavam a vinda de uma menina.
Eu curti muito a gravidez dela, confesso que fui um pai babão. Usei o quarto dos idosos como o quarto da nossa menina, que se chamaria Akai. Aprendi a criar abelhas, e tinha mel a vontade. Consegui domar uma búfala, então eu também tinha leite. Havia gamos crocodilos, aves grandes, e tudo nos servia de comida, e fazia roupas e cobertores de suas peles, e enfeites e instrumentos mágicos com suas penas. Minha pequena aldeia voltava a bonança. Tínhamos três animais de estimação. Uma raposa, que Nuria apelidou de Mordack, um urso, que eu tentei espantas das abelhas, mas ele acabou ficando. Nós o chamávamos de Dandara. Um gorila, que começou a fuçar nosso lixo atrás de frutas e nós passamos a deixar uma bandeja de frutas para ele. Ele era o Darack. Nuria alimentava alguns beija-flores, mas havia um em especial, um azul, ele comia na mão dela, havia uma conexão muito forte com o danadinho. Akai crescia saudável, e foi quando um novo baque nos arremessou contra a parede. Nuria colhia flores, para os enfeites de beltane, quando foi mordida por um dragão de komodo. Eles não são venenosos, mas tem uma boca tão podre que ao morder um animal, ele morre em poucos minutos de infecção. Acho que este foi o maior choque de minha vida, encontrar minha tão amada esposa aos pedaços na mata. Agora, éramos somente eu e Akai. Virei mãe. Foi difícil me adaptar a organizar meu tempo para cuidar da plantação, cuidar de Akai, ensinar-lhe o português, o guarani, o crioulo, o alemão, o hindu, ler, escrever, cuidar de sua educação ambiental e espiritual. Só então, eu me lembrei de um detalhe. No quinto aniversário de Akai, dez anos depois do acidente, eu me lembrei que eu tinha vinte e cinco mil reais, e que aquele lugar poderia ser habitado, de alguma forma. Pai céu jamais deixa seus filhos sozinhos..
Eu fiz um enorme suprimento de comida, peguei nossas roupas, celei dois búfalos e a búfala, coloquei nela os suprimentos e o dinheiro, um búfalo carregava Akai e suas coisas e o terceiro eu e minhas coisas, e demos adeus a nossa pequena cabana na mata. saímos sem rumo. Uma viagem xamânica dentro da minha viagem xamânica. Sai, e depois de dois meses de viagem, encontramos um pequeno vilarejo. Estávamos nas ilhas Fiji, e eu consegui encontrar uma pequena pista de pouso, de onde consegui pagar o frete de um avião até Sidney. Lá compramos roupas novas, abandonamos os búfalos e seguimos, para a argentina. Da argentina, voltamos a São Paulo, e de lá, de ônibus segui direto para a tribo. Eu saí de casa, na minha iniciação, aos dezesseis anos de idade, para aminha viagem xamânica. Voltei dez anos depois, com vinte e seis anos, para a minha tribo, pai, viúvo, um payé completo. Instrumentos mágicos com a minha energia, conectado com o divino. Com uma discípula. Desde quando saí, meu cocar me esperava, e então finalmente o coloquei. Muito prazer. Meu nome é ÑANDESY IDIA TUKWURA KAIOWÁ.
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