“Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas. Esses índios vão pagar pelos seus atos, invasores das fazendas”! – Márcio Margatto – fazendeiro, presidente do Sindicato Rural de Iguatemi-MS.
“Vocês não deixem esse lugar. Cuidem com coragem essa terra. Essa terra é nossa. Ninguém vai tirar vocês… Cuidem bem de minha neta e de todas as crianças” – Nísio Gomes – Cacique Kaiowá Guarani, assassinado em 18-11-2011.
É difícil traduzir em palavras a tamanha crueldade contra os povos Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul. A violenta, dolorosa e desumana morte do cacique Nísio Gomes é apenas mais um capítulo numa infindável história de atrocidades.
Indignação, raiva, tristeza e impotência. Esses são os sentimentos que se misturam quando se toma conhecimento da sistemática e reiterada agressão ao povo Kaiowá Guarani: Queima de barracos, intimidações, destruição de plantações, seqüestros e assassinatos seguido da crueldade do desaparecimento de corpos. Por detrás dessa violência sem fim se encontra o agronegócio no Estado do MS. Os indígenas são vistos como “ervas daninhas” que incomodam os “jardins do latifúndio”, diz Tatiana Bonin.
O agronegócio e o latifúndio não toleram os indígenas porque os mais de 30 acampamentos às margens da rodovia mantém viva a consciência de que um dia aquelas terras lhes pertenceram, foram o seu tekoha, agora invadida, grilada, roubada e tomada à força. Os acampamentos dos indígenas com seus paupérrimos barracos de lona preta na beira das fazendas interpelam a consciência dos fazendeiros. Os indíos são um “estorvo” em meio à paisagem do gado pastando e da vastidão da soja e da cana-de-açucar.
A situação dos indios no Mato Grosso do Sul já foi definida pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat como “a maior tragédia indígena do mundo
O indigenista Egon Heck, emociona-se ao falar da morte do cacique Nísio Gomes: “Sangue Guarani Kaiowá no chão. Rastos do corpo arrastado. Apenas constatações. Um pequeno resto da mata testemunhou mais um assassinato de seus seculares guardadores”. Pergunta o coordenador do Cimi-MS: “Quanto sangue ainda precisará ser derramado para que se cumpra a Constituição e legislação internacional garantindo aos povos nativos, no caso os Kaiowá Guarani, suas terras e o sorriso volte aos rostos abatidos pela violência”?
Nos últimos oito anos, segundo relatório divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve 250 assassinatos entre indígenas do Mato Grosso do Sul, mais do que todas as mortes ocorridas no resto do país (202). “As estatísticas oficiais e oficiosas confirmam a honraria de Mato Grosso do Sul no ímpeto genocida. Se a média brasileira é de 24,5 homicídios por 100 mil habitantes, só na reserva indígena de Dourados chega a 145 para a mesma quantidade da população”, escreve o jornalista Jânio de Freitas.
Essa é a face mais visível da violência que sofrem os indigenas, mas há outras: desaldeamento, altos índices de suicídio entre os jovens, desnutrição entre as crianças, fome, alcoolismo, precarização do trabalho nas usinas de etanol e confinamento em pequenos espaços que se assemelham a “campos de concentração”.
A situação do povo Guarani no Mato Grosso do Sul é estarrecedora. Apesar de viverem em um dos estados mais ricos de um país cuja economia é uma das que mais cresce no mundo atualmente, muitos Guarani vivem em extrema pobreza. Alguns vivem sob tendas na beira de estradas, outros vivem em ‘reservas’ superpopuladas, onde são dependentes de ajuda do governo. “É uma situação desumana o que vimos neste acampamento. Temos que tomar medidas concretas o mais rápido possível”. - Dom Dimas Lara Barbosa.
Uma violência sem fim. Foi preciso mais uma morte com requintes de crueldade para que a dramática situação dos Kaiowá Guarani viesse novamente à tona.
“Já me bateram na beira da rodovia quando eu vinha à noite. Tenho medo, mas não paro [a luta pela terra], porque, se eu morrer, misturo com a terra de novo”, disse o cacique Nísio Gomes em setembro de 2009. “Jeito meigo e sorridente, era a sua característica principal, inconfundível. Sua fala baixa, se tornava por vezes quase incompreensível. Ele estava em quase todas as mobilizações de luta do povo Kaiowá Guarani pelos seus direitos, especialmente à terra. Nos últimos dez anos já voltara quatro vezes a seu tekohá Guaiviry. Era um lutador resistente, persistente. Não desistia nem por nada a seu sagrado chão”. Assim é descrito o cacique Nísio Gomes por Egon Heck.
O assassinato de Nísio foi anunciado. Quatro dias antes de sua morte uma centena de Kaiowá Guarani, Terena e Kinikinawa participantes de um encontro assim se referiram ao acampamento liderado por Nísio: “Realizamos este evento com nossos corações cheios de angústia, porque, ao mesmo tempo em que aqui estamos discutindo nossa situação, recebemos a notícia de que nossos irmãos Kaiowa do acampamento de Guaiviry retornaram novamente, há alguns dias, ao seu tekohá e encontram-se, neste momento, cercados por jagunços a serviço dos fazendeiros. Além da ameaça de ataques violentos, agora sofrem com a fome, em função do covarde cerco a que são submetidos. Tememos pela vida e integridade física de nossos parentes. Advertimos que qualquer agressão que acontecer será de responsabilidade das autoridades brasileiras.”
O prenúncio se confirmou. Nisio foi friamente executado na manhã do dia 18 de novembro diante do seu grupo. “Vocês não deixem esse lugar. Cuidem com coragem essa terra. Essa terra é nossa. Ninguém vai tirar vocês… Cuidem bem de minha neta e de todas as crianças”, disse Nísio Gomes, baleado e agonizante.
Nísio foi executado a tiros – nas pernas, no peito e na cabeça – e, segundo depoimentos dos indígenas, os pistoleiros arrastaram o seu corpo e o jogaram na carroceria de uma camionete. O corpo de Nísio até o momento não foi encontrado para a dor de sua comunidade e de sua avó de 105 anos. O assassinato seguido de desaparecimento do corpo se tornou uma prática comum no modus operandi dos pistoleiros na região.
O mesmo aconteceu com os professores Guarani Jenivaldo e Rolindo que foram levados pelos assassinos. O corpo de Jenivaldo foi encontrado no rio Ipo’y, sete dias depois de raptado e o corpo de Rolindo até hoje não foi localizado. ”Mato Grosso do Sul se tornou um campo de fuzilamento dos povos indígenas” escreveram os estudantes Kaiowá Guarani dos cursos de Ciências Sociais e História e moradores da aldeia de Amambaí em Carta de Protesto.
A essência do conflito na região se dá em função da terra. Progressivamente, mas de forma mais intensa na segunda metade do século XX, houve um processo de “redução territorial e confinamento” dos indígenas em pequenas extensões de terras reservadas a eles. O assédio às terras ocupadas por povos indígenas sempre foi enorme. Terras remanescentes e ricas, foram alvo de mineradoras, depois de fazendeiros para a expansão do agronegócio – soja, arroz, cana-de-açúcar, eucalipto – e da pecuária. Por fim, também de obras de infra-estrutura – como estradas ou hidrovias – e de produção de etanol, com enormes impactos ambientais e sociais. Não raro essa dinâmica exploratória contam com recursos públicos provenientes do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
Neste contexto, a situação dos indígenas vai se degradando. Desaldeados ou não, são alvo fácil da ganância de fazendeiros que os fazem trabalhar em condições hostis em usinas ou em condições similares à escravidão. Mas, a importância da terra ultrapassa a dimensão meramente produtiva. Ao menos para os Guarani, “povo da palavra” ou do “caminho”, a terra assume também características espirituais. “Os vínculos dos guarani com seu território são profundos e envolvem elementos materiais e espirituais (…) Para os guarani, a vida, em toda a plenitude e potencialidade, só pode se concretizar em um tekoha – um espaço específico onde se pode viver ao estilo guarani. Não é um lugar qualquer, e sim um espaço assim identificado com a intervenção dos espíritos, que orientam o olhar do xamã (o Karaí). Neste lugar é que se dão as condições para que se realize o modo de ser guarani, e ele deve apresentar uma série de características que envolvem aspectos ambientais, sociais e sobrenaturais. É necessário que o Karaí sonhe com este local e, em geral, um tekoha deve ter água e matas, campos, animais, ervas, espaço para plantar e cultivar alimentos (o milho, a mandioca, batata doce, amendoim, feijão, melancia, abobora)”.
“Neste sentido, quando os guarani ocupam um espaço ínfimo, à beira de uma rodovia, o que estariam nos dizendo? Quase sempre essa ocupação é, na verdade, o limite mais próximo que eles conseguem estar de uma área mais ampla, identificada como um tekohá, e que quase sempre se situa ‘do lado de dentro’ das cercas que dividem certas propriedades”, concluem os pesquisadores.
Segundo a Constituição de 1988, o processo de demarcação das terras indígenas no país deveria ter sido terminado em 1993. Entretanto, as pressões políticas dos fazendeiros retardaram o processo no Mato Grosso do Sul. No final de 2007, a Funai assinou acordo com o Ministério Público Federal para apressar a demarcação e, em função disso, seis grupos de trabalho para identificação e delimitação de terras indígenas foram lançados em julho de 2008. O fato gerou forte reação dos fazendeiros do Estado e, desde 2009, uma série de episódios violentos passaram a acontecer na região.
“Os conflitos se devem, sem dúvida nenhuma, à lentidão inconcebível na demarcação das terras indígenas”, afirma o procurador da República em Ponta Porã, Thiago dos Santos Luz.
A quantidade de terras reivindicadas pelos indígenas se aproxima de um milhão de hectares, cerca de 2,8% do território de Mato Grosso do Sul. Mas o pleito enfrenta resistência do governador, André Puccinelli (PMDB), e de alguns fazendeiros da região.
Os fazendeiros são radicalmente contrários a qualquer demarcação. A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso – FAMATO se pronunciou dizendo que caso as novas áreas indígenas sejam criadas ou ampliadas, 1,1 milhão de ha de áreas já consolidadas pela agropecuária deixarão de ser produtivas.
“Reconhecemos os direitos dos índios, que precisam ter acesso aos serviços básicos de saúde, saneamento, educação. Mas precisamos avaliar melhor os critérios das demarcações de terras. Hoje, os nossos 27 mil indígenas já ocupam um território de 16 milhões de hectares equivalente aos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Alagoas”, compara o presidente do Sistema FAMATO, Rui Prado.
O discurso dominante propaga a ideia de que demarcações redundam “em muita terra para pouco índio”, mas não se dá conta de que com o agronegócio se tem “muita terra para pouco branco”.
Apenas a garantia de espaço e direitos à terra dos povos indígenas poderá reduzir o número de conflitos e tensões que desencadeiam os casos de violência. “É fundamental que o Estado brasileiro aceite e respeite a reivindicação indígena por demarcação de terras”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel.
Em documento divulgado nessa semana a CNBB é enfática: “Sem demarcação de terras os indígenas do MS seguirão martirizados”. O documento faz ainda uma dura cobrança da ausência do Estado: “Para além de declarações oficiais de solidariedade, o momento e as circunstâncias exigem ações concretas, do contrário, pode-se estar contribuindo para a morte de um povo por omissão ou negligência. O não cumprimento dos parâmetros constitucionais, neste caso, configura-se como genocídio”, diz trecho da nota lançada pela CNBB na última quarta-feira.
A demarcação das terras indígenas é ainda fundamental para a preservação da cultura guarani. O que está em jogo é a sobrevivência cultural do povo Kaiowá-Guarani, ou seja, se não forem garantidos as suas terras se estará acentuando o processo de etnocídio, que significa a negação do direito de vida de um povo conforme lhe assegura a Constituição e a Legislação internacional. Nós estamos bastante preocupados pelo nível de agressividade novamente desencadeado por parte de interesses contrários que sempre negaram o direito à terra e à sobrevivência com dignidade do povo Kaiowá-Guarani”.
O recrudescimento da violência contra os indígenas no Mato Grosso do Sul é proporcional a ausência do Estado. Pior ainda, o Estado sul-mato-grossense age contra os indígenas. Além de se colocar contra a demarcação das terras, o Estado local não coíbe a violência. É conhecida a postura anti-indígena do governador do Mato Grosso do Sul André Puccineli que já afirmou que “MS não é terra de índio” e que “deseja integrar os índios a partir do conceito de produção, para dar a eles a verdadeira independência”.
“Para se ter idéia, desde 2008, quando se assinou o TAC – Termo de Ajustamento de Conduta para o cumprimento da demarcação de terras –, vimos uma enorme campanha anti-indígena durante os anos que passaram veiculadas e financiadas até pelo governo do estado. Repassava recursos aos municípios para ter assessorias jurídicas contra a demarcação de terras. Fez grandes campanhas de imprensa, em outdoors, veiculando intencionalmente mentiras muito óbvias, do tipo que o ‘estado seria inviabilizado se as terras fossem demarcadas’, ‘os povos estariam reivindicando 12 milhões de hectares das terras mais férteis do estado’ (no cone sul do MS), ‘estariam inviabilizando 26 municípios’, ‘ocupando municípios’. Um conhecido nosso dessas cidades disse expressamente que comprou armas para se defender porque o sindicato rural havia avisado de que os índios iam invadir tudo.. qualquer movimentação dos índios é rechaçada imediatamente, através de paramilitares, milícias armadas, pistoleiros dos fazendeiros e todo o poder econômico” e isso tudo com a leniência do aparelho de estado mato-grossense. Os índios não confiam nas polícias Militar e Civil de Mato Grosso do Sul. Segundo Otoniel Ricardo, representante da aldeia Te´yikue, de Carapu (MS) a política estadual é anti-indígena. “Por isso, não confiamos nas polícias estaduais e queremos maior presença da Polícia Federal e da Força Nacional”. - Egon Heck.
Mais grave ainda é conivência do Estado sul-mato-grossense com a violência. Os sucessivos atos de agressão contra os índios não são apurados pela polícia do Estado do MS. “Depoimentos de índios no Estado não valem nada”, destaca o procurador da República em Ponta Porá, Thiago dos Santos Luz, ao acompanhar a apuração da morte e ocultamento de corpo de Rolindo Vera: “É intrigante constatar que pelo menos seis indígenas, as únicas testemunhas oculares dos fatos, em depoimentos detalhados, verossímeis e harmônicos, prestados logo após os crimes, tenham expressamente nominado e reconhecido três indivíduos que participaram direta e pessoalmente do violento ataque a Ypo´i e nenhuma delas tenha sido sequer indiciada pela autoridade policial, que concluiu o caso sugerindo o arquivamento”.
O Mato Grosso do Sul é reconhecidamente o estado mais anti-indígena do Brasil. Onde está o governo federal? Ao mesmo tempo em que há um sentimento de insegurança, desconfiança e temor com a forma como se comporta o Estado local, os indígenas sentem-se também desprotegidos pelo governo federal. “A presidenta Dilma está muito distante da questão indígena. Por ser mulher, eu imaginava que ela teria mais atenção. Alguém precisa amolecer o coração dela, pois não fomos nós que criamos toda essa situação. O Brasil está parado na questão indígena”, afirma Anastácio Peralta, da aldeia Panambizinho, de 1,2 mil hectares, localizada a cerca de 17 quilômetros do centro de Dourados (MS).
Sentimento esse descrito por Egon Heck: “Eu tenho impressão de que o governo federal infelizmente só dá respostas com o mínimo de retorno nesses momentos extremos, em situações de grande violência e morte. Mas a questão indígena é responsabilidade total do governo federal, no sentido de garantir a vida e o acesso aos recursos e patrimônios da natureza. Infelizmente, não se tem avançado no sentido, diversas vezes sugerido, de contar, ao menos num primeiro momento, com a ajuda da polícia e da Força Nacional de Segurança, equipes com preparação específica para atuar com grupos étnicos diferentes, de culturas diversas”.
De fato, foi necessária a repercussão da morte do cacique Nísio Gomes para o governo federal se manifestar de forma mais incisiva. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, disse que a solução dos problemas indígenas no Mato Grosso do Sul é “questão de honra”: “Para nós, a questão indígena mais importante é Mato Grosso do Sul, onde a incidência de violência e morte é acentuada e a situação de perdas de criança nos ofende profundamente. Estamos fazendo todo o esforço [para reverter essa situação]”.
De acordo com o ministro, o governo federal vai divulgar uma série de políticas públicas para os cerca de 44 mil índios da região. “Está próximo [o fechamento de] um acordo com o governo do estado para que a gente consiga ter uma área delimitada para os Guarani-Kaiowá. É uma preocupação, um compromisso”, garantiu Gilberto Carvalho.
Ato contínuo, o secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos deslocou-se para a região e ele próprio foi alvo da truculência dos fazendeiros da região. Mesmo acompanhado pela Força Nacional de Segurança, a sua comitiva foi interpelado dedo em riste pelo presidente do Sindicato Rural de Iguatemi Márcio Margatto, político e fazendeiro, que além de filmar a comitiva, num gesto de arrogância e prepotência fez ameaças publicamente: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas. Esses índios vão pagar pelos seus atos, invasores das fazendas! Por isso tiro fotos… Ninguém pode com nós! Nós que mandamos aqui. Vai acontecer do jeito que nós queremos, nunca vamos deixar os índios e nem a Funai invadir fazendas”, disse o fazendeiro, representante patronal de sua categoria e político.
A postura vacilante do secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência Paulo Maldos, que naquele momento representava o Estado brasileiro, foi criticada pelo jornalista Janio de Freitas: “Por que não foi feita pela Força Nacional, sempre fortemente armada, a prisão dos jagunços que sujeitaram uma comitiva representante da Presidência da República e em missão de defesa da proteção constitucional aos indígenas?”. Segundo ele, “a prisão dos agressores era dever legal e obrigação funcional da Força, a própria razão de sua presença acompanhando a comitiva oficial. O Ministério da Justiça, ao qual a Força Nacional está subordinada, não explicou a omissão”.
“Aqui o boi vale mais do que uma criança guarani”, ou ainda a afirmação de outra liderança guarani: ”Quase não temos mais chance de sobreviver neste Brasil”. Não é apenas “o boi que vale mais do que uma criança guarani”, também a soja e, sobretudo, a cana-de-açucar. A dramática situação do povo kaiowá Guarani deve-se ao fato de que os mesmos “estão fora do lugar”. O que tem valor e é valorizado no Estado são as commodities.
Como diz Egon Heck, “De um lado, se tem um dos estados de economia mais florescentes do País, baseado na monocultura de milho, na criação de gado e, agora, a monocultura da cana-de-açúcar está entrando com muita força. E, por outro lado, há muitas populações expulsas do campo, dentre elas principalmente as indígenas. Essas são as mais afetadas, pelo fato de suas terras se situarem, em geral, nas áreas mais férteis que são as de mata Atlântica, no extremo sul do estado, as terras Guarani-Kaiowá.”
Continua ele: “Hoje, na região, existem mais de 20 milhões de cabeça de gado que dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça, enquanto os índios Guarani-Kaiowá não chegam a ocupar um hectare por índio. Assim, com falta de terra, centenas de sem terras indígenas são obrigados a se deslocar para a beira das estradas. Essa é uma situação calamitosa para essas populações, além de gritante em termos de injustiça para com os povos indígenas e os trabalhadores sem-terras”, diz o coordenador do Cimi-MS.
As duas dinâmicas se chocam, não são conciliáveis. Quem poderia proteger os mais fracos é o Estado, mas esse permanece preso ao modelo neo-desenvolvimentista – ancorado boa parte na produção de commodities. A não confrontação do Estado ao agronegócio como se viu também no Código Florestal, já manifesta uma opção. Nessa equação, perdem os mais fracos, perde o povo kaiowá Guarani.
O fato é que os indígenas estão redobrando suas mobilizações para exigir seus direitos. No final de novembro, cerca de 300 indígenas das etnias Xipaya, Xicrin, Kuruaya, Arara, Juruna, Assurini, Araweté, Apiterewa e Kayapó, afetadas por Belo Monte, se reuniram em Altamira para cobrar respostas definitivas sobre o cumprimento de medidas relacionadas aos impactos gerados pela usina de Belo Monte na região.
Em Colíder, no Mato Grosso, indígenas entraram na coordenadoria regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) e ordenaram para que o coordenador substituto Sebastião Martins, se retirasse. Eles querem o retorno do índio Megaron Txucarramãe, uma das principais lideranças indígenas Kayapó, ao cargo, exonerado no último dia 31 de outubro.
Megaron fez parte do quadro da regional desde 1995, atuando em diferentes funções até assumir a coordenadoria. A causa da exoneração estaria diretamente ligada à oposição da construção de hidrelétricas planejas pelo governo federal no Nortão e, também, a Belo Monte, no rio Xingu (PA).
A nova investida sobre terras indígenas e o desrespeito aos seus direitos está, mais uma vez, relacionada a questões econômicas, tanto neste caso, como em todos os demais envolvendo povos indígenas, ribeirinhos ou outros. Na análise do antropólogo Márcio Meira, presidente da Funai, “a expansão econômica do País exige mais energia e a grande fonte é a Amazônia, onde está a maioria das terras indígenas. Tudo deve ser feito com o máximo de diálogo. E é aí que entra a consulta prévia aos povos indígenas, que, embora prevista na Constituição, não foi regulamentada”.
A Constituição Federal assegura o direito dos povos indígenas à consulta prévia antes da construção de um empreendimento que possa gerar impacto às comunidades. No entanto, como se vê esse direito é desrespeitado no Brasil. Para garantir a participação dos indígenas nas decisões políticas, a Organização Internacional do Trabalho – OIT adotou a Convenção 169, a qual, segundo Ricardo Verdum, “trouxe uma série de inovações no trato de questões relativas aos povos indígenas e tribais no âmbito dos estados nacionais. Entre elas, o direito dos povos indígenas serem consultados em todas as decisões legislativas ou administrativas que os afetem, de maneira prévia, livre e informada, cabendo aos estados nacionais garantir as condições adequadas para que isso ocorra”. Ricardo Verdum é doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília – UnB e assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc.
Nesta entrevista especial à IHU On-Line, Verdum discorre sobre a origem do Direito de Consulta Prévia, Livre e Informada dos Povos Indígenas, assim como sobre a inovação e essência desse mecanismo. “O direito dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada é parte do sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos desde 1989. Nesse ano, por pressão de intelectuais, indigenistas, lideranças e organizações indígenas, entre outros, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, organização integrante do chamado Sistema das Nações Unidas, adotou uma nova convenção, conhecida como ‘Convenção 169 da OIT’. Essa convenção trouxe uma série de inovações no trato de questões relativas aos povos indígenas e tribais no âmbito dos estados nacionais. Entre elas, o direito dos povos indígenas serem consultados em todas as decisões legislativas ou administrativas que os afetem; de maneira prévia, livre e informada, cabendo aos estados nacionais garantir as condições adequadas para que isso ocorra. Isso está estabelecido nos Artigos 6º, 7º e 15º”.
A Convenção 169, explica Ricardo Verdum, “é hoje o único instrumento jurídico internacional sobre os direitos humanos dos povos indígenas. A partir dela é reconhecido o direito dos povos indígenas à autodeterminação. Isso tem implicações legislativas e administrativas, como também deveria ter implicações institucionais e práticas na relação do Estado com as comunidades locais. Ela assegura a todos os povos indígenas o direito de manifestar livremente sua vontade e é uma das formas principais de garantir todos os direitos dos povos indígenas. Além disso, deverão ser-lhes garantidas as condições para mover ações legais, individualmente ou por meio de suas formas próprias de representação coletiva, a fim de garantir a proteção efetiva de tais direitos”.
(Ecodebate, 06/12/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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